A desnecessária revogação explícita de decretos pelo Governo Federal

Como foi dito em postagem anterior (É indiferente, irrelevante revogar norma que tenha perdido eficácia) “era perfeitamente dispensável a revogação de uma série de decretos federais que tiveram como ementa: Declara a revogação, para os fins do disposto no art. 16 da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, de decretos normativos” (A série pode ser vista em leisedecretos.com.br).

Pode ser que um ou outro decreto “declarado revogado” não tenha perdido a eficácia (não foi feita consulta a todos) mas aqueles verificados haviam mesmo perdido seus efeitos jurídicos por algum dos motivos constantes do elenco de Casos em que a norma perde eficácia por razões intrínsecas.

Mas a revogação dos decretos era dispensável porque não é necessário revogar explicitamente a norma que não tem mais efeito algum, a que perdeu eficácia, a que agora é absolutamente indiferente para o mundo jurídico.

Imagine-se uma lei que tenha sido editada com o único propósito de revogar uma outra. Logo quando de sua entrada em vigência, após observado eventual vacatio legis, ela perde eficácia porque atingiu o fim para o qual foi editada: revogar a outra norma.

O exemplo é só para questionar aqueles que acreditam na imprescindibilidade de revogação explícita de norma que perdeu a eficácia. Se toda norma deste tipo deve ser revogada, então deve haver, obrigatoriamente, uma norma que revoga a norma revogadora. Mas quantas normas revogadoras mais vão ter que seguir revogando normas revogadoras ? E mais ainda: após decorrido quanto tempo é que aquelas normas devem ser revogadas explicitamente ? E a contar de quando ? De que data ? Em que momento ?

Uma difícil (quiçá, impossível) resposta séria e convincente a estes questionamentos reforça, ainda mais, que é desnecessário, indiferente, irrelevante revogar explicitamente normas que não tenham mais eficácia, que sejam indiferentes para o mundo jurídico.

Mas a ementa dos decretos traria a “justificativa” para a revogação explícita, qual seja, para os fins do disposto no art. 16 da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que estabelece:

Art. 16. Os órgãos diretamente subordinados à Presidência da República e os Ministérios, assim como as entidades da administração indireta, adotarão, em prazo estabelecido em decreto, as providências necessárias para, observado, no que couber, o procedimento a que se refere o art. 14, ser efetuada a triagem, o exame e a consolidação dos decretos de conteúdo normativo e geral e demais atos normativos inferiores em vigor, vinculados às respectivas áreas de competência, remetendo os textos consolidados à Presidência da República, que os examinará e reunirá em coletâneas, para posterior publicação.

Este dispositivo está na Seção II do Capítulo III que trata “Da Consolidação de Outros Atos Normativos” no que se incluem, naturalmente, os decretos. 

Mas o art. 16 alude ao art. 14 que trata do procedimento para consolidação das normas, que por sua vez remete ao art. 13, que trata da consolidação em si e que deve também ser aplicada aos decretos, em especial, no que aqui interessa:

Art. 13. As leis federais serão reunidas em codificações e consolidações, integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, constituindo em seu todo a Consolidação da Legislação Federal.

§ 1º A consolidação consistirá na integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados.

§ 2º Preservando-se o conteúdo normativo original dos dispositivos consolidados, poderão ser feitas as seguintes alterações nos projetos de lei de consolidação:

…………………………………

XI – declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores.

§ 3º As providências a que se referem os incisos IX, X e XI do § 2º deverão ser expressa e fundadamente justificadas, com indicação precisa das fontes de informação que lhes serviram de base.

A escolha da expressão (“Declara a revogação”) não foi feliz e não tem qualquer fundamento que se possa extrair do art. 16 da Lei Complementar nº 95, de 1998.

Parece que teria sido o inciso XI do § 2º do art. 13 aquele que, pretensamente, explicaria a escolha da expressão “Declara a revogação”.

Quem o leu, no entanto, não o interpretou corretamente pois o dispositivo alude a dispositivos implicitamente revogados, ou seja, quando dispositivos posteriores tiveram redação incompatível com eles (§ 1º do art. 2º do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB). 

Os dispositivos implicitamente revogados, realmente, necessitam de que seja expressamente declarada sua revogação como meio de reconhecer sua incompatibilidade com a norma posterior. Tal declaração deve ser expressa e fundadamente justificada, conforme exigência do § 3º do art. 13 da Lei Complementar nº 95, de 1998 (§ 3º As providências a que se referem os incisos IX, X e XI do § 2º deverão ser expressa e fundadamente justificadas, com indicação precisa das fontes de informação que lhes serviram de base.”).

Se a expressão (“Declara a revogação”) tivesse minimamente algum fundamento no art. 16 e se fosse o caso para revogação explícita dos decretos, deveria haver declaração expressa e fundadamente justificada de incompatibilidade da redação com normas posteriores. Porém, estas normas posteriores não foram apontadas porque sequer existem.

A finalidade da revogação, à toda evidência, não era a consolidação dos decretos, pois também não se viu que eles tenham se tornado parte de um único ato normativo, contendo matérias conexas ou afins, nos moldes constantes do caput do art. 13 e seu § 1º. 

A finalidade dos decretos era, portanto, unica e exclusivamente, revogar de modo explícito normas que não necessitavam de revogação porquanto já não tinham mais eficácia.

Em verdade, o tão alardeado “revogaço”, que teria a finalidade de ‘racionalização, desburocratização e simplificação do ordenamento jurídico’ (“Revogaço” do Planalto incluiu 25 decretos de luto oficial) não tem serventia alguma para o mundo jurídico; é perfeitamente dispensável porque inútil.

Deste modo, toda celeuma causada pela desnecessária e lamentável revogação dos decretos de luto oficial não teria ocorrido e não seria preciso a expedição do Decreto nº 10.954, de 29 de janeiro de 2022 (leisedecretos.com.br) que tornou ainda pior o que já estava ruim. 

Como expressão de uma atecnia exacerbada, a ementa daquele decreto Torna sem efeito a declaração de revogação de decretos. Como assim “torna sem efeito” ??? Quer dizer que os decretos “declarados revogados” já não estão mais revogados ??? Foi criada uma nova figura na técnica legislativa: “tornar sem efeito uma norma” ??? Pode ser que para que se verificasse a repristinação daria trabalho demais restaurar todos os decretos “revogados” (§ 3º do art. 2º da LINDB), então optaram por “tornar sem efeito a declaração de revogação”.

Ainda que fosse possível repristinar no caso, seria dada vida a norma que não tem mais eficácia. Tamanha trapalhada não merece comentários.

Mas não pensem que é só. As normas federais vêm sofrendo uma deterioração na técnica legislativa nada invejável, o que será matéria para uma nova postagem.

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